Tolkien vs. Teísmo aberto
Em seu livro O Silmarillion, o autor J. R. R. Tolkien narra uma série de eventos de eras passadas àquelas da estória “O Senhor dos Anéis”. O primeiro capítulo é uma descrição da criação de todas as coisas por Eru, chamado na língua do elfos de Ilúvatar, Aquele que é. A semelhança com Gênesis da Bíblia é muito clara e intencional, miscigenada a várias outras filosofias as quais não pretendo mencionar aqui. Também não fiz citações bíblicas, pressupondo que alguém que se interessa por um texto como esse sabe o que ela ensina a respeito. O que me impressionou no livro foi um acontecimento anterior ao aparecimento de Arda, a terra e toda a criação em vista das constantes declarações dos proponentes do Teísmo aberto ou Teologia Relacional, dos quais fazem parte os conhecidíssimos Ricardo Gondim e Ed Rene Kivitz.
No ínicio, Ilúvatar gera de seu pensamento os Ainur, seres magníficos e poderosos, mais tarde chamados pelos elfos de Poderes do Mundo, e através de temas musicais propostos por Ilúvatar, os Ainur executam sua música numa progressão cada vez mais harmoniosa e bela através da qual o mundo veio a existir. No entanto, um dos mais poderosos Ainur, Melkor, desejando criar coisas por si mesmo começou a se afastar do tema que os outros Ainur estavam tocando e sua música tornou-se dissonante. Por longas eras, duas músicas tocaram uma a parte da outra, e, embora a beleza da música continuasse, a tristeza começou a habitar no Reino abençoado. Eru, então, propõe um novo tema, ainda mais grandioso, mas Melkor persiste em sua música dissonante. A dos Ainur, era bela e meoldiosa, mas a de Melkor, repetitiva. No entanto, as duas pareciam se entremear criando um novo tema, e, então, Eru se pronuncia:
“Poderosos são os Ainur, e o mais poderoso dentre eles é Melkor; mas, para que ele saiba, e saibam todos os Ainur, que eu sou Ilúvatar, essas melodias que vocês entoaram, irei mostrá-las para que vejam o que fizeram E tu, Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca imaginou.”
Nem Melkor, o mais portentoso e sábio dos Ainur atentou para o fato de que a ligação Criador-criatura é inseparável, inegociável e estabelecida em uma relação de subordinação a única Vontade totalmente livre e guiada pelo conselho do Ser Criador. O maior determina e o menor cumpre a determinação. No pensamento de Tolkien, tudo tem sua fonte neste Ser, mesmo que a análise dos fatos não chegue à profundidade dessa constatação.
De outro lado, estão os postulantes da Teologia Relacional, cuja cosmovisão submete ao amor de Deus todos os seus outros atributos. Aliás, como diz François Varillon, S.J.: (...)“o amor não se situa nesse plano, não é um atributo de Deus: é o próprio ser de Deus.” A conclusão deles é que esse amor resulta em liberdade de escolha, pois um Deus que ordena a História de forma linear, sem contudo, caminhar junto com o homem através dela, não pode se relacionar com seres que a percorrem e restringe-lhes a liberdade. Deus abriu mão da sua soberania e do conceito clássico da onisciência para se tornar próximo ao homem, decidindo com ele, trabalhando suas imperfeições através da Bíblia, aprendendo com eles e se arriscando. Na base disso, está a filosofia de que o futuro não pode ser conhecido porque ainda não aconteceu, ele nem existe. É uma linha desenhada pelo dedo de Deus junto com a do ser humano. Na prática, essa visão explicaria o que eles chama de contingência (ocorrências sem propósito, sem um porquê, sem finalidade).
O Melkor dos teólogos relacionais não é o diabo. É essa contingência, essa dissonância, essa falta de propósito, é a definição dessas notas fora do pentagrama e posicionadas sem levar em conta seus valores dentro do compasso e sem concordância com as outras notas para se formar um acorde. O compositor não escreveu essas notas, elas foram colocadas pelos músicos, ou ainda, pelos próprios instrumentos. O maestro não se põe a frente dos músicos, ele passa por entre a orquestra tentando captar as notas e reordená-las num corre-corre para tirar um pouco de som dessas partituras rabiscadas.
O Iluvatar de Tolkien confronta e subjuga Melkor, mostrando-lhe uma representação material, substancial de sua música num passeio por toda a história para que Melkor entenda que sua música desafinada tem sua origem no compositor, que já ponderou e calculou milimetricamente cada nota na sua partitura, seus valores dentro do compasso e suas posições em relação às outras. Dele derivam todas as notas de todas as músicas, criadas para sua própria glória e para admiração de todas as suas criaturas.